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‘Iracema Fala’, de Nuno Ramos, confunde com imagens herméticas – 14/08/2021 – Ilustrada

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Sem medo de errar, pode-se dizer que “Iracema – Uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é um dos filmes mais emblemáticos do cinema brasileiro.

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Com um trabalho formidável que introjeta ficção em planos documentais, o filme de 1974 consegue, como poucas obras, evidenciar algo das tragédias estruturais do Brasil. Paulo César Pereio interpreta o caminhoneiro conhecido como Tião Brasil Grande, um entusiasta do progresso, das novas estradas, da potência latente do gigante Brasil.

Acontece que, ao longo da película, ele atravessa, na verdade, o conjunto horrível que constituí o país, por todos os lados há queimadas, escravidão no campo, miséria, caos, violência, arbítrio da lei, grilagem de terras e prostituição infantil, como a de Iracema, uma menina de traços indígenas que com seus 15 anos inicia a vida no ofício.

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Além da intensidade criativa e dos planos impactantes, o filme ainda possui a coragem do enfrentamento. No auge da ditadura, pós milagre econômico, a película apresenta a contraface da apologia nacionalista, ou, melhor dizendo, como é a barbárie que alimenta esta locomotiva infernal chamada Brasil.

A retomada atual desse clássico do cinema brasileiro na performance “Iracema Fala”, idealizada por Nuno Ramos, como parte do projeto “A Extinção É para Sempre”, mostra um tipo de recorrência daquele horror formulado pelo filme. Nas palavras da atriz Edna de Cássia (ou Edna Cereja, como ela prefere), intérprete de Iracema: “Quem envelheceu foi a Edna, o resto ficou tudo igual”.

Junto com a vontade de revisitar a obra, contudo, o artista e sua equipe propõem também uma reorganização das forças internas do filme. Edna, agora uma senhora, que atravessou a vida de forma penosa, apesar do breve sucesso que o trabalho em “Iracema” lhe rendeu à época, é convidada a ocupar um lugar de protagonismo na organização da performance: ela opera câmeras, dá indicações para o elenco, comenta passagens.

Espera-se expandir questões do filme inserindo uma perspectiva despercebida e silenciada na produção de 1974. Assistimos, portanto, a vários dos planos propostos pela Edna-diretora, que atravessa o espaço cênico-cinematográfico num trilho, comandando o aparato técnico de filmagem, ou seja, marcando o seu ponto de vista para as improvisações inspiradas no filme.

Só que há um tipo de ambivalência no procedimento. Logo fica evidente que tão importante quanto os enquadramentos de Edna é o plano mais aberto que mostra ela filmando. Esse plano, obviamente, não é conduzido por ela.

Mais tarde, quando ela orienta um operador de câmera sobre como ele deve filmar a última cena, o vídeo da performance segue alternando entre o que ela está dirigindo com aquele outro plano, mais amplo, no qual a vemos atrás do câmera sussurrando comandos. “Ali, fecha nele”, “agora abre nas primas”. O áudio dela e do operador estão abertos. Afinal, tão importante quanto ver o que ela dirigiu é vê-la dirigindo.

Podemos dizer, então, que a performance não é exatamente conduzida pela ex-atriz. Ela é a “diretora” só entre aspas de uma performance cujos verdadeiros criadores são o artista Nuno Ramos e sua equipe.

São eles que estabelecem os sentidos do todo e que, num flagrante paradoxo, conduzem a autonomia criativa de Edna. Mais estranho, tornam este alegado gesto de protagonismo um efeito de cena e fazem da presença da atriz uma espécie de relíquia da realidade.

Esta zona cinzenta que a performance filmada ocupa faz também com que o próprio impulso crítico mobilizado a partir do filme ganhe um aspecto secundário, evanescente e, assim, perca muito de sua força.

As cenas são apresentadas de forma fragmentada, algo desconexas, criando um mosaico bastante indistinto para quem não conhece o filme de 1974. Além disso, as improvisações do elenco, inspiradas em passagens do filme, sublinham gestualidades tiradas das cenas, mas desprezando a tensão entre o gesto individual e sociedade que há nas situações de “Iracema – Uma Transa Amazônica”.

Sobram ali movimentos abstratos, sem lastro social, desprovidos das situações que os originam, do impacto documental dos planos, das relações entre personagens.

Este conjunto de imagens confusas e herméticas, mais a estetização da autonomia de Edna-Iracema, não consegue nem repor a força do filme, tampouco saltar para algo novo, a partir dos estudos daquela obra.

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